Há aproximadamente 25 mil anos, seres humanos entraram em uma caverna no local em que hoje é o sudoeste da França. As marcas que eles deixaram perduram até hoje. Eles desenharam imagens de animais nas paredes e no teto da caverna, usando materiais como varetas, carvão e óxido de ferro. Os leões, mamutes e cavalos malhados desenhados movimentam-se, pastam e se reúnem em bandos.
A arte da caverna Pech-Merle e de centenas de outras presentes em todo o continente europeu atualmente representa a evidência de que, muito antes dos tempos modernos, os seres humanos usavam a criatividade.Mas o que são exatamente essas pinturas rupestres? Os artistas pré-históricos apenas esboçavam a paisagem vista por eles todos os dias? Ou essas imagens seriam mais simbólicas, divergindo da realidade, ou ainda, representando criaturas raras ou místicas? Perguntas como essas dividiram a opinião de arqueólogos durante anos.
Agora, um grupo de cientistas usou técnicas bastante modernas para ajudar a decifrar o mistério, ao menos em relação aos famosos cavalos malhados da caverna Pech Merle. Comparando o DNA de cavalos modernos com os que viveram na Idade da Pedra, os cientistas determinaram que os desenhos são representações realistas de um animal que coexistiu com os artistas rupestres.
A pesquisa foi publicada online na segunda feira passada, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, e originou-se do empenho em identificar as cores da pelagem de cavalos antigos a fim de descobrir quando esses animais foram domesticados, momento crucial do desenvolvimento das sociedades humanas. A variedade de cores observada nas espécies domesticadas é, de modo geral, bem maior do que nas espécies selvagens. Por isso, compreender a variação de cores dos fósseis de animais pode ajudar a determinar o período.
Estudos anteriores do DNA de ossos e dentes de cavalos que viveram entre 7 e 20 mil anos atrás demonstraram que esses animais eram negros ou baios (com pelagem marrom e juba e cauda pretos). O estudo foi publicado na revista Science em 2009. Desde então, os geneticistas vem decifrando o código subjacente do padrão malhado, conhecido como leopardo, nos cavalos modernos. Assim, os cientistas retornaram às amostras e procuraram pela sequência genética que determinava o padrão leopardo em cavalos que viveram na Europa entre 11 e 15 mil anos atrás.
"Existe uma associação impressionante entre os padrões de cores da pelagem dos cavalos malhados das cavernas francesas do Paleolítico e os encontrados pelos geneticistas nos genótipos" _ sequências genéticas específicas _ "de genes de cores" _ afirmou Hopi E. Hoekstra, biólogo evolutivo da Universidade de Harvard que estuda pigmentação. Hoekstra não participou do estudo, mas chamou-o de "bastante convincente".
Um dos autores do estudo, o biólogo evolutivo Michael Hofreiter, da Universidade de York, na Inglaterra, afirmou: "A razão do empenho dos artistas em elaborar essas lindas pinturas será sempre um mistério".
"Trata-se de um enigma. Porém, é bom observar que, se retrocedermos 25 mil anos, as pessoas não tinham muita tecnologia e a vida provavelmente era difícil. Apesar disso, eles já se esforçavam em produzir arte. Isso diz muito sobre nós enquanto espécie".
O processo de extrair o DNA de materiais antigos é complexo, e a possibilidade de contaminação é muito grande. Estudos anteriores do DNA Neandertal foram prejudicados pela contaminação causada por seres humanos e conduziram ao ceticismo em relação ao futuro desse campo científico.
Desde então, os pesquisadores vêm adotando procedimentos rigorosos a fim de evitar a contaminação de amostras antigas com DNA atual. Os procedimentos incluem analisar materiais antigos e contemporâneos em instalações fisicamente separadas e replicar os resultados diversas vezes.
"É um nível totalmente diferente de limpeza", afirmou Jessica L. Metcalf, pesquisadora de pós-doutorado da Universidade do Colorado que também trabalha no Centro Australiano para DNA Antigo, em Adelaide. Os laboratórios do centro que trabalham com DNA antigo e moderno ficam a mais de um quilometro e meio de distância um do outro.
"Possuímos salas lacradas com filtros de ar HEPA e luzes ultravioleta que esterilizam o local quando uma pessoa entra", afirmou. "Passamos mais da metade do tempo limpando. Usamos muito alvejante. Vestimos uma roupa limpa e ridícula com uma viseira de proteção", afirma.
Na verdade, afirma Hofreiter, os cientistas que trabalham com genes antigos de cavalos não devem nem mesmo andar a cavalo.
"Os vestígios do DNA simplesmente aderem nas pessoas", afirmou.
Esse cientista de 38 anos trabalhou com Svante Paabo, pioneiro na pesquisa de DNA antigo, no início da carreira. Hofreiter pretendia estudar taxonomia, mas ficou tão fascinado pela ideia de extrair o DNA de materiais antigos, que mudou seu objetivo.
Ele conta que "tendo em mãos um fragmento de fezes de 30 mil anos e usando luvas, consegue-se de fato obter o código genético do animal. Eu achei isso muito fascinante", afirma.
Hofreiter e seus colegas não iniciaram pelo estudo da arte rupestre. Eles realizavam a pesquisa sobre a coloração da pelagem de cavalos pré-históricos. Foi somente depois da descoberta do gene do cavalo malhado nas amostras antigas que eles perceberam a possibilidade de contribuir com a arqueologia.
"Descobrimos que havia na verdade apenas três padrões de cores _ malhado ou manchado, escuro e marrom", afirmou. "São três fenótipos que encontramos nas populações selvagens. Depois, percebemos que eles eram exatamente os mesmos presentes nas pinturas rupestres", afirma.
Terry O'Connor, arqueólogo da Universidade de York, colaborou com o estudo e afirmou que os cavalos malhados foram particularmente usados no argumento de que a arte rupestre é mais simbólica do que realista, por isso essa descoberta pode causar agitação. Contudo, agora está claro que alguns cavalos possuíam o gene dessa coloração de pelo.
"As pessoas desenhavam cavalos malhados porque viam cavalos malhados", afirmou.
O'Connor afirmou que, ao explorar uma caverna da região de Dordogne, na França, este ano, ficou espantado ao observar uma série de esboços de mamutes.
"Eles eram absolutamente majestosos, alguns usavam os próprios contornos da caverna, capturavam tamanho, forma e movimento", afirmou. "Olhando para eles, você pensa: 'Essas pessoas conheciam as características dos animais e sabiam desenhar'", afirma.
As técnicas do trabalho com o DNA antigo melhoraram. Agora, os cientistas utilizam-nas para responder a um número cada vez maior de perguntas sobre o passado, desde o que ocorreu com a variação genética de espécies no decorrer da alteração de seu meio ambiente até como os seres humanos recolonizaram a Europa após última era do gelo e que tipo de micróbios habitavam o organismo das pessoas e dos animais há milhares de anos.
"O que proporciona mais satisfação em relação a esse artigo como exemplar da ciência do DNA antigo é que ele, de certa forma, inicia com uma pergunta", afirma O'Connor. Esses cavalos malhados eram encantados ou reais?
"E então a ciência responde à pergunta. Não se trata apenas de 'retirar o DNA de ossos antigos e verificar as informações que ele traz'", afirma.
Fonte: Abril
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